“Fargo” e “Inside Llewyn Davis”: Os Dois Finais de Ulisses

da infinita aventura de voltar para casa

Pedro de Almendra
Persona

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i.

Em Fargo (1996), os irmãos Joel e Ethan Coen nos apresentam Marge Gunderson (Frances McDormand), uma personagem marcada pelo contraste das duas vidas que a dividem: uma vida doméstica simples, pacata, e uma vida profissional inusitada e caótica. De um lado Norm Gunderson (John Carroll Lynch ), seu marido bondoso, a preparar-lhe um café da manhã com ovos, e, do outro, Gaear Grimsrud (Peter Stormare), um dos vilões mais terríveis da história do cinema; de um lado o amor, do outro o ódio, e entre eles o espírito reconciliador de Marge, que é capaz de levar um ao outro sem perder a si mesma no processo. Norm é a sua normalidade; e tão forte é essa normalidade que pode Marge distar bastante dela, visitar ainda os limites da anormalidade que, sustentada por esse centro que a puxará de volta a si, mesmo diante de seu oposto, pode manter-se como é: Marge, mulher de Norm, policial, mãe.

Completamente inversa é a estrutura de Llewyn Davis (Oscar Isaac) em “Inside Llewyn Davis”(2013), dos mesmos Joel e Ethan Coen. Para ele, não há normalidade alguma. Já está tão fora de casa que não se lembra mais do caminho de volta. Enquanto Marge tem um café da manhã sempre à sua espera, Llewyn não tem nada além de sofás aleatórios a ele cedidos por amigos também aleatórios. Como Marge, Llewyn espera um filho, mas não esperará por muito tempo; preferiu pagar o aborto. São personagens opostos como dia e noite, céu e inferno, casa e rua, ordem e crise. Em Inside Llewyn Davis é-nos concedida uma anatomia da crise, uma espiada dentro de uma personalidade já despedaçada.

Marge e Norm Gunderson em Fargo

Esses dois pólos que aqui contrasto são ilustrados com certo humor numa cena de Inside Llewyn Davis, em que Llewyn e Jean Berkey (Carey Mulligan), uma ex-namorada que carrega o seu filho no ventre, conversam numa cafeteria. Ele a acusa de “careta” por querer uma família e mudar-se para o subúrbio, e ela replica chamando-o de “perdedor”. Llewyn se explica dizendo que não divide o mundo em categorias (tendo acabado de fazê-lo), e segue afirmando que “só há dois tipos de pessoas: os que dividem o mundo em dois tipos de pessoas e…” quando é interrompido por Jean, que o completa: “os perdedores”.

Ora, em ordem de se dividir o mundo em categorias, é preciso um centro, um chão firme, um eixo capaz de situar todo o restante. Quem não recorre a esse centro é refém dos eventos, das circunstâncias, e do ritmo por elas escolhido; é incapaz de situá-las, de dar-lhes sentido ou valor. Esse problema é ilustrado de novo, em certa altura de Inside Llewyn Davis, quando Johnny Five (Garrett Hedlung), um personagem bastante singular, lê um poema de Peter Orlovsky, um poeta beatnik — que, penso, é o próprio Johnny Five — , chamado “My Bed covered Yellow”. Vejamos o poema:

My bed is covered yellow

“[…]
Oh bed, only for man & not for animals
yellow bed when will the animals have equal rights?
Oh 4 legged bed off the floor forever built
Oh yellow bed all the news of the world
lay on you at one time or another”

É na cama onde todas as notícias do mundo, hora ou outra, encontram repouso; nela toda a volta, toda a aventura, é redimida. É ela o ponto de encontro que dá sentido ao percurso. O ponto que distancia a aventura da perdição; centro esse que Marge tem, mas Llewyn não: ele não dorme em uma única cama no filme, mas tão somente em sofás aleatórios. É precisamente aí que consiste a diferença de personalidade entre Llewyn e Marge. Os dois são distantes como — e já peço desculpas pelo orientalismo cafona — Yin de Yang. Marge é o ponto branco no centro de Yin; Llewyn é o ponto negro no centro de Yang. Um leva ordem ao caos; o outro leva caos à ordem. Os personagens secundários dos dois filmes não são tão caricaturais à toa. Enquanto Marge se vê rodeada dos bandidos mais bizarros e esquisitos possíveis, Llewyn se vê rodeado de pessoas boas, legais, no mesmo perfil de um Ned Flanders, com suéteres e tudo mais. A diferença abismal que se observa entre os filmes é, pois, uma de ângulo e não de tema.

ii.

Ulisses em Inside Llewyn Davis

Aqui vou acrescentar outro personagem nessa comparação que venho desenvolvendo; um terceiro que, penso, nos servirá de síntese. Refiro-me ao gato alaranjado que rompe as cores frias de Inside Llewyn Davis: Ulisses. A presença desse gato, cujo nome só nos é revelado em altura estratégica, é uma das mais interessantes e reveladoras chaves interpretativas do filme, e não deve ser descartada como piada despropositada, conforme pretendo demonstrar no decorrer deste ensaio.

O filme começa com Llewyn encarregado de tomar conta do gato dos amigos que o hospedaram na noite anterior, os Gorfein’s. Porém, passadas apenas poucas horas, ele o deixou escapar, e, quando pensou tê-lo encontrado de novo, acabou, na verdade, trocando-o por outro gato igualzinho. Só descobriu sua falha quando, ao devolver o gato aos donos, foi expulso da casa deles, tendo que tomar conta do gato que encontrou.

Precisamente depois desse episódio na casa dos Gorfein’s, Llewyn, já desamparado, decide tentar as chances em uma gravadora de Chicago, onde fracassa novamente. Na estrada de ida, ele e o gato pegam carona com dois personagens bem esquisitos: Rolland Turner (John Goodman) e Johnny Five. Turner é um aleijado obeso que, a meu ver, parece uma caricatura do demônio — algo já comum à filmografia dos irmãos Coen — . Em uma interação com Llewyn, ele se diz um praticante das artes negras e lhe roga uma praga. Diz que um dia Llewyn perguntará a si mesmo: “Por que eu carrego essa dor comigo? Por que nada dá certo em minha vida? Minha vida é um monte de merda, eu não me lembro de ter feito esse monte de merda”.

Não demoraria muito para a profecia se cumprir: o último fracasso de Llewyn, na gravadora de Chicago, parece gastar o resto de força que ele ainda tinha. No diálogo com o dono da gravadora, ele é aconselhado a retomar a antiga parceria com Mike, um velho amigo que havia se suicidado há alguns anos. Llewyn, por sua vez, replica, em ironia mórbida, que “é um ótimo conselho”, o que indica que está pensando em se suicidar. Todavia, antes de cumprir seu plano, lhe é oferecida uma última chance de redenção, uma possível cama para se aliviar do peso que acumulou nos ombros: o desvio na estrada que leva à Akron, cidade onde mora uma outra ex-namorada, que, como ele descobriu há pouco, não realizara o aborto pelo qual ele havia pagado, e teve o filho. Ao não tomar aquele desvio, Llewyn assume a sua sentença. Essa despedida é tema da última música que ele toca no filme:

“(…)Muddy river runs muddy and wild
You can’t give a bloody for my unborn child
Fare thee well, my honey, fare thee well
Just as sure as the birds flying high above
Life ain’t worth living without the one you love
Fare thee well, my honey, fare thee well”

iii.

“The road not taken”

Ainda na estrada para Nova York, seu destino é confirmado por meio de uma cena alegórica bastante curiosa. Súbito, Llewyn é surpreendido por um gato no meio da estrada, e o atropela. Ao descer do carro, vê a silhueta do gato cambaleando rumo à floresta escura, na beira da estrada; tratava-se do segundo gato, que ele abandonara durante a viagem para Chicago. O primeiro gato, por sua vez, voltou para casa, o que nos é revelado depois, quando Llewyin chega a Nova York e visita novamente os Gorfein’s; só nessa visita é, enfim, revelado o nome do gato: Ulisses.

Essa menção ao herói homérico não é feita em vão. Em sua própria aventura, Ulisses perde-se, mas, ao fim, torna a sua casa em Ítaca, onde deita à cama, como fez o gato do filme depois de suas próprias e desconhecidas aventuras. Mas, saliento: assim como há dois gatos, o original que voltou para casa e o falso que se perdeu na beira da estrada, há dois Ulisses: um que voltou para Ítaca e outro, falso, que permaneceu se aventurando até adentrar, por vontade própria, nos portões do inferno cristão — onde se perdeu eternamente; tal qual faz o falso gato na cena alegórica da estrada.

O Ulisses falso a quem me refiro é o Ulisses que Dante Alighieri encontra em um dos episódios mais interessantes da Divina Comédia. O Ulisses que Dante vê está condenado ao inferno e, ao contrário do que diz o texto homérico, nunca tornou para sua esposa e seu filho, pois seguiu se aventurando até a última e perpétua aventura: o inferno cristão.

“Nem doçura de filho, ou que se apieda
do velho pai, nem o devido amor
que Penélope então fizera leda,

vencer puderam dentro em mim o ardor
que eu tive em me tornar do mundo experto,
e dos humanos vícios e valor;”

(Canto XXVI , Tradução de Vasco Graça Moura)

Para esse Ulisses, nem a piedade do filho, nem o amor de sua mulher poderiam vencer o ardor e a vontade de perder-se desbravando o mundo. O motivo de Dante ter se distanciado tanto da história original de Ulisses, ignorando seu retorno a Ítaca, é que ele nunca leu Homero. Os textos de Homero estavam perdidos e eram inacessíveis a Dante, que só o conheceu pelo que leu em terceiros: Lucano, Virgílio e, principalmente, Ovídio. Dante só sabia que Ulisses foi até Circe e que de lá saiu em outra aventura, não sabia do seu retorno para casa e, por isso, ao continuar a jornada de Ulisses na Comédia, Dante continuou a história cortada, finalizando-a por si mesmo. Presumiu que o aventureiro continuaria a aventurar-se por todo o sempre. Tivesse Dante visto Ulisses voltar para casa, teria mudado seu destino. Por falta desta informação, a do retorno para casa, presumiu o inferno. Eis um dos fatos mais interessantes da história da literatura: um único aventureiro, ainda o primeiro e maior, atingiu os dois fins possíveis de toda aventura: tanto a vida como a morte; tanto a ordem como a crise; tanto Ítaca como o inferno.

Llewyn Davis, ao ignorar a estrada de volta para Akron, sua possível Ítaca, define, pois, o seu destino. Irá seguir o segundo gato naquela beira de estrada que dá no inferno. Não comerá ovos ou Bacon; restou-lhe uma reles sarjeta e cansaço, onde concretiza a praga que lhe foi imposta há pouco. Está lá, e não sabe a quem voltar outra vez. Pior; sabe e escolheu não voltar. É fiel, quase que linha por linha, ao choro do Ulisses de Dante. Nem a piedade do filho nem o amor da mulher lhe foram suficientes. Seu suicídio, sugerido no diálogo com o dono da gravadora, e nas letras de músicas tocadas no filme, como “Hang-me o Hang-me”, ainda que deixado em aberto, parece certo, inescapável. O filme não acaba com seu suicídio. O filme, aliás, não acaba: é cíclico. Trata-se de um retrato do inferno; de um alerta.

Na cena final de Fargo, Marge tem um diálogo marcante com o principal vilão do filme, um criminoso cruel, perdido (“Far gone”), tão distante quanto se pode estar da realidade suburbana de Marge. Esta, pois, lhe pergunta como quem desabafa: “Por que você fez tudo isso?”, ao que recebe somente silêncio por resposta; Marge desiste e volta pra casa onde dorme com o marido, e afirma, convicta: “Até que não estamos nada mal, Norm”. Llewyn, ao contrário, termina o filme em uma sarjeta, tendo acabado de apanhar. Está igualmente perdido, deixado ao lado de fora escutando o show de ninguém menos que um iniciante Bob Dylan. Este que, divago, saindo do palco, vendo Llewyn ali, jogado, sentiria a mesma curiosidade, digamos, antropológica, de Marge, e também faria o seu inquérito:

“And how does it feel?
to be on your own,
with no direction home

A complete unknown,
like a rolling stone”

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“You shall know the truth and the truth shall make you odd.” ― Flannery O'Connor