Como eu saísse uma tarde — W.H.Auden ( Tradução de “As I Walked Out One Evening”)
*por Pedro de Almendra
Como eu saísse uma tarde,
Descendo a Avenida Bristol,
E as gentes nas calçadas
Balançassem feito trigo,
Pude escutar, sob a ponte,
Nas margens do lago extenso
Um cantor apaixonado:
“Meu amor será pra sempre
Eu juro te amar, meu bem,
Até que o mar vire sertão,
A China se encoste n’África
E na rua cante um salmão,
Te amarei até estender-se
num varal todo o oceano,
E as sete estrelas do céu
Se grasnarem feito gansos.
Nossos anos irão lépidos
Como lebres, pois possuo
A Flor das Eras
E o primeiro amor do mundo.”
Mas os relógios, sentidos,
Começaram seu chiado:
“Não te enganes com o Tempo
Ele nunca foi domado.
‘No profundo Pesadelo
Onde a Lei está despida,
O Tempo fica na espreita
A tossir em tuas carícias.
‘Entre dores de cabeça
Cai a vida devagar,
E o Tempo sairá triunfante
No porvir, no mais tardar.
‘Branca neve há de cobrir
Os campos mais verdejantes,
Pois o Tempo corta as danças
E a maré dos navegantes.
‘Mergulhai as mãos na água,
Até escorrer pelas beiras;
Olhai, Olhai, a vasilha
E pensai no que perdêreis.
‘Batem gelos entre os copos,
Os lençóis estão desertos,
E a xícara abre uma fenda
Que vos leva até o inferno.
‘Lá o mendigo cobra juros,
O Gigante encanta João,
Um neném faz cara feia
E Maria cai no chão.
‘Contai, contai no espelho,
Cada ruga em vossa face:
A vida é uma benção
Para além da humana arte.
‘Mirai, mirai a janela,
Tendo os olhos rasos d’água;
Ama o teu mau vizinho
Com teu peito magoado..”
Já era enfim o fim da tarde,
O casal havia sumido,
Os relógios se aquietaram,
Mas corria o lago infindo.