Aos Renovos da Erva — 3 Poemas de Ranieri Ribas com ilustrações minhas

Pedro de Almendra
5 min readMay 9, 2019

Há pouco tempo foi publicado “Aos Renovos da Erva”, um belo livro de poemas do meu amigo Ranieri Ribas*, que foi ilustrado com desenhos meus. Compartilho por aqui, pois, três dos poemas que ilustrei acompanhados de três desenhos. O livro pode ser comprado aqui.

XV

1.

Ao último degrau do sono guardada
uma escada desdobra um braço sobre o chão
inicio a ascensão porque sei:
sua aparição me será
um istmo ao empíreo e nela terei
livre trânsito junto aos anjos.

Sabeis, leitor:
o último degrau do sono é isto
um istmo entre terra e empíreo
e nele tu e eu teremos
por cicerone os corrimões
índices ao nosso caminho
archotes de luz que nós andarilhos
no último degrau do sono
carregaremos.
Ninguém nos virá à entrada estreita dizimar.

Por isso te digo: subir estas escadas é repisar os astros
radicados no chão desde a raiz
e orquestrá-los em sua revolução.
Tu também poderás percorrê-las, viajor de estrelas
porque estas escadas são
como esteiras aos caminheiros que vão para o nada
caminhando na paisagem parada do movimento
repetindo o estático mover de ecrãs
das paisagens eternamente reprisadas.

2.

Então já sabes que estas escadas são um mero sobrepassar de pés.
Subi-las nos faz ansiar as cores que fulguram nos belvederes
incita recompensas no findar da escadaria
aquela epifania à primeira vista do alto do miradouro.

Sinto que subir escadas é cansar-se desde dentro
subir com vagar e sentir a força das coxas arquear
arrastar-se e fungar-se e arquejar como
se estivesse a desfazer-se de si.
Por isso subo-as lento a imitar
o crescimento das plantas
porque as escadas nos sopesam
como paralelepípedos grandes
e é como se fôssemos dela vassalos
na construção de imensas pirâmides

3.

Agora também sabes tu:
subir estas escadas é um estar-se estafermo
cansado de si mesmo.
Subo-as como se desnovelasse o andar às mãos de Ariadne
e ouço o ecoar pausado
dos sapatos palmilhados passo a passo

Agora percorro os corredores e percebo
que subir escadas é um estar-se profundamente
dentro do movimento do corpo
dentro de si mesmo
arfante, pulsante, sanguíneo.

Há escadas, entretanto, nos ofertando a entrada da casa,
a calmaria do lar.
Nestas, finalmente terás abrigo
e abrirás a porta com a chave
que do último degrau do sonho trouxeste.
Depois de andar a esmos por corredores erráticos
tu e eu teremos umbral e guarita
neste arco-íris finito de escadarias:
a casa aberta onde um leito de pedras acolherá nossos corpos.
E dali veremos o parapeito das janelas que darão para o nada.

XX

Na memória morrem remorsos que se entreolham
Reminiscências tardias, fugacíssimas infâncias.
Na memória, em consórcio, eu e a morte
fincamos entre nós obeliscos e alcântaras

Assistimos a tudo então desfalecer:
A rigidez das horas, o arcano, a mora
Os amores mortos, a esperança, o tremor das mãos.
Na memória a morte nos outorga ao que outrora

Fora fecundidade e a mais pura paixão.
Na memória há nódoas e corcéis velozes
entre vozes e estertorosas tentações que Antão

Nos trouxe agora em seu vigor mais lauto.
Na memória se enodoa o olvido que nos força
Ao inefável, ao fugidio, à finitude do acto.

XXII — ODE A CHARLES DE FOUCAULD

1

No deserto a paixão de dar-se a Deus
Proximidade e combate sereno
Contemplar em si o tempo
Fazê-lo trabalho lento em canteiros
Restituir-se só
Em silêncio, paciente e severo
Perseverar consorte
Seu diário lavor de dom austero
Senhor Charles de Foucauld combatente
Tinha em vós o entrevero presente

2

Nós nazarenos perfazemos sós
O caminho ao último reduto
O deserto em nós
Porque Cristo oferta-nos seu casulo:
Seremos nazarenos
aprenderemos o trabalho das mãos
carpintaria e pão
à sombra e ao sol deserto somenos
misericórdia e desolação
incólume ao mundo, à perturbação

3

A vida com Cristo em ti jamais tarda
Fabricas o pão vosso
Vos fala o dom da graça
Diligência diária
Atravessaste em teus pés cem Saharas
Homem nômade, tu amavas os mouros
E tudo que tinhas tu partilhavas
Jardineiro fraterno e amoroso.

XXIII — ODE SEGUNDA

Cultivavas o trigo ao trabalho artesão
ao Jesus Nazareno ávido revivias
a partilha da vida, a mansidão dos dias
ordinários passando em vossas mãos:
a vida se fazia dádiva diária e vias
Milagres cotidianos.

Sua transcendência terrena era auto-deposição.
De Cristo refazias os gestos, à espera
de serena repetição, e tão seus estes
gestos em vossas mãos se fizeram
de Cristo (mais do que imitação)
fizeram-se renascença, revivescência
fulgor e paixão.

Charles de Foucauld foste sombra
Ausência e presença.
Eras tu eucaristia e conduzias de Cristo somente
Aquilo que se transubstancia, a hóstia e o sangue latente
Não guardavas a face de Cristo por contrafação
Querias reencarná-lo, tê-lo à proximidade, à comunhão

E por isso se fez pessoa
Fez-se desprendimento e renúncia.
O Cristo outro aquém do Próprio
Vosso Cristo sacerdócio, claridade e imensidão
E assim servo seguiste o itinerário
Os passos de Jesus recobertos
em projeção trilhaste o caminho passo a passo
Levando-o, pequeno irmão, e consigo ele em vós
Coabitando nosso amigo fraterno e consorte irmão.

Estavas em companhia de Santo Antão e São Pacômio.
Irmão Carlos de Jesus, dizei-me:
Como em ti o deserto fez-se residência e plena doação?
Se o corpo do Salvador a sua medida extravasa
Como testemunhar a verdade cristã?
Se a alma do Filho a nós embasa,
como hei de sê-lo em submissão?
Dizei-me missionário em vosso coração:
Como sois vos de Cristo receptáculo
Como sois homem de ação?

*Ranieri Ribas nasceu em Barreiras, Bahia (1977). Viveu por alguns anos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Atualmente exerce a profissão de professor em Teresina, Piauí. É autor de um livro de poemas intitulado Os Cactos de Lakatus(2003), além de publicar alguns artigos acadêmicos na área de Filosofia Política e Antropologia Filosófica.

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Pedro de Almendra

“You shall know the truth and the truth shall make you odd.” ― Flannery O'Connor