A Descoberta do Romance em “A Grande Beleza”

Pedro de Almendra
7 min readMay 15, 2019

*Ensaio publicado na edição 29 da revista dEsEnrEdoS

“Sempre me esforcei para ir à alma das coisas e de me deter nas grandes generalidades, e evitei expressamente o acidental e o dramático. Nada de monstros e nada de heróis!”

(Gustave Flaubert, carta a George Sand em dezembro de 1875)

I.

A Grande Beleza é o mais célebre trabalho de Paolo Sorrentino — rendeu-lhe, afinal, o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2013. Trata-se, certo, de uma obra singular. Anda longe do que é chão comum no cinema contemporâneo. Não digo bem: o filme é quase que um antídoto — preciso, bem dosado — aos vícios tediosos das artes de nosso tempo. Não apenas um antídoto; é, como este ensaio pretende demonstrar, um exorcismo.

Trata da vida de Jep Gambardella, um jornalista de renome que já há certo tempo escreveu um romance de sucesso. Nunca mais, porém, conseguiu escrever o segundo, o que lhe é cobrado constantemente no decorrer do filme. O enredo se monta, pois, sobre a perda e o encontro da arte do romance e sua relação com os dilemas espirituais do personagem. Esse é o principal conflito do filme.

Visto que o sucesso inicial de seu livro lhe permitiu compor a alta sociedade romana, Gambardella vive em festas exuberantes, com muito dinheiro, muitas mulheres e amigos influentes. Viveu à procura de uma “Grande Beleza” para basear seu próximo romance. Mas sua sina é paradoxal: vivencia grandes experiências, mas não encontra inspiração alguma para seu romance (jogo de paradoxos típico, aliás, de Sorrentino). E agora, aos 65 anos de idade, sente por toda essa exuberância tão somente enfado. Lamenta: “Vim, vi, venci. Agora, e daí?”.

II.

Gambardella conclui que toda essa exuberância equivale ao nada. Insiste, por vezes, em ressaltar uma famosa citação de Gustave Flaubert, em que diz ser seu maior desejo escrever um romance sobre nada. Desabafa:

“Isso é o nada. E como eu posso escrever sobre o nada se nem Flaubert conseguiu?”.

A insistência não é à toa. Há uma confusão curiosa em torno dessa citação de Flaubert que, creio, faz paralelo com os conflitos do filme.

Mario Vargas Llosa, em A Orgia Perpétua, seu incisivo estudo de Flaubert e Madame Bovary, faz uma crítica a um artigo de Nathalie Sarraute intitulado Flaubert le Précurseur (1965) onde ela proclama Flaubert o precursor do romance moderno. Sarraute coroa seu argumento com um recorte de uma carta de Flaubert à Louise Colet, onde observamos esse suposto desejo que ele tinha em realizar um “livre sur rien”:

“O que me parece belo, o que eu queria fazer, é um livro sobre nada, um livro sem ligação externa, que ficasse em pé sozinho pela força interna de seu estilo, assim como a Terra, sem sustentação, se mantém no ar, um livro que quase não tivesse assunto ou no qual pelo menos, o assunto fosse quase invisível, se isso é possível.” (Gustave Flaubert, carta à Louise Colet em 16/01/1852)

Segundo Llosa, Sarraute se equivoca em concluir, a partir desse trecho, um suposto formalismo exagerado de Flaubert. Este estava tão somente confessando sentir mais entusiasmo com os aspectos formais, com o estilo. Sem deixar, porém, de dar grande importância à ligação entre o romance e o mundo real. Llosa destaca este recorte de outra carta como argumento:

“Eu queria fazer livros em que não fosse preciso senão escrever frases (se é que se pode dizer isso), assim como para viver não é preciso mais que respirar o ar. O que me aborrece são as malícias do projeto, as combinações de efeitos, todo o calculo da base e que por isso são a arte, porque o efeito do estilo depende disso, e exclusivamente” (Flaubert, carta à Louise Colet em 26/06/1853)

A partir daí já podemos concluir que Flaubert tem, pois, não desprezo, mas falta de entusiasmo, ante as malícias do projeto, combinações de efeito e o cálculo de base. Mas assume que é precisamente nesse cálculo de base — as ligações exteriores — que consiste a arte.

São as conexões exteriores, o link com o real, que fundamentam o romance. Flaubert bem sabia. Gambardella, porém, se confunde: seu erro é precisamente o de rejeitar a realidade ao procurar o seu romance. Explico: ao buscar uma grande e exuberante beleza, acreditando ser apenas ela que pode justificar o romance, ignora a realidade a sua frente, que é, por vezes, simples e nada exuberante. O próprio Madame Bovary, por exemplo, é a história de um casal comum, provinciano, em meio a vizinhos comuns, dramas comuns e pecados comuns.

O objeto do romance é a realidade, e esta é ordinária. O romancista é quem enxerga que, como diz G.K. Chesterton, “a coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, sua mulher comum e seus filhos comuns”.

A jornada de Gambardella em busca da grande beleza, como mostra o filme, não passou de uma busca por uma grande ilusão. A grande beleza inexiste e buscar por ela é uma via morta. Esse é o fracasso de Gambardella e por isso ele se vê angustiado: se não há tema sublime, não há nada, e não há romance sobre o nada. Falta considerar o ordinário.

III.

A redenção, contudo, acontece. Inicia-se de modo inusitado:

Surgem boatos de uma santa, uma freira de 104 anos que visitará Roma com um cardeal importante — antigo exorcista da igreja. A freira seria levada a um jantar com a equipe de Gambardella, pois havia lido e gostado do seu primeiro livro.

Pouco antes do jantar, Gambardella é apresentado ao cardeal. Eis que, prestes a lhe perguntar algumas questões espirituais que o atormentavam, o cardeal o ignora e se distrai, sem dar qualquer importância às suas preocupações.

Porém, quando se encontram novamente, no momento do jantar, Gambardella provoca o cardeal acerca de sua interação anterior. Diz que não iria repetir-lhe as perguntas que pretendia fazer, pois seria uma grande decepção ver que ele não teria respostas. O cardeal se desconcerta. Gambardella, depois do jantar, vai até seu carro desculpar-se, quando indaga se ele havia sido realmente um grande exorcista. Ao ouvir a pergunta, o sacerdote, súbito, realiza um pequeno exorcismo aparentemente aleatório e despropositado. Ao concluir o rito, fecha a janela do carro e sai. Parece ser um episódio sem importância, entretanto, é precisamente esse rito sacramental o centro da redenção do personagem. Sua libertação do vício do sublime, do demônio que o tenta com a grande beleza, que nesse momento fora exorcizado.

A figura da freira também é digna de realce. Uma santa, penitente, humilde, que só se alimenta de poucas raízes por dia, em meio à luxuosa alta sociedade romana — contraste que lembra a clássica alegoria do “sal terrae et lux mundi” –. Gambardella tem posteriormente um pequeno, e revelador, diálogo com ela, em que ela lhe pergunta por que ele nunca escreveu outro livro, ao que Jep responde que procurou pela grande beleza, mas nunca a encontrou. A freira, inusitadamente, responde:

“Sabe por que eu só como raízes? Porque raízes são importantes”

Aí, nessa curta sentença está revelado, por contraste, todo o erro de Gambardella. Considerem: a freira só se alimenta daquilo que importa e abstém-se dos adornos desnecessários, dos vícios, dos exageros, consome tão somente a substância; Gambardella, porém, faz o perfeito inverso, detém-se aos acidentes e ignora o fundamento. Não se importa com nada, pois nada que consome importa.

Foi-lhe recomendada uma dieta de raízes. É preciso que se abstenha do que é perecível. E eis que, na última cena, Gambardella aprende a lição. Lê as linhas iniciais de seu novo romance:

“É assim que termina: com a morte. Antes, contudo, houve a vida. Escondida por baixo do blá, blá, blá… É tudo sedimentado por baixo das conversas e do barulho. O silêncio e o sentimento, a emoção e o medo. Os frágeis e inconstantes vislumbres de beleza. E depois a maldita desolação e a humanidade miserável. Tudo debaixo do constrangimento de estar no mundo. Blá, blá, blá, blá…”

Continua: “Mais além está o mais além. Não penso no que está mais além. Portanto, que comece este romance. No fundo, é só um truque. Sim, é só um truque”.

Encontrou seu romance, pois, não no mais além, mas no ordinário cotidiano. O romancista é, antes de criador, um investigador. Sua descoberta é algo comum a todos: o silêncio e o sentimento, a emoção e o medo. Por isso seu ofício é um truque: realiza uma extraordinária descoberta, porém, do ordinário. Eis a arte do romance. Eis o truque. Revela-nos o que já temos; o homem comum, a mulher comum e seus filhos comuns.

Ensaio publicado anteriormente na edição 29 da revista dEsEnrEdoS

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Pedro de Almendra

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